Alcoolismo - Cartilha básica


O COMEÇO
Nos primeiros anos de contato com a medicina notei que pacientes alcoolistas eram discriminados. O primeiro que chamou minha atenção foi ainda no internato, quando um jovem de menos de 40 anos permaneceu um dia inteiro numa maca do pronto socorro sem ser examinado porque era um “bêbado conhecido” e só depois verificou-se que se tratava de coma por traumatismo craniano e não por um “porre”. -Não me parecia importante o fato de meu pai beber sempre e só depois de várias crises, médica formada havia muito tempo, pude compreender todo o dano causado e finalmente lidar de maneira construtiva com os sentimentos desencontrados vividos, resignificando toda a situação em meu lar de origem e em mim mesma.

RISCOS
Tenho observado a presença de muitas esposas de alcoolistas, um número menor de mães e filhos de drogaditos nos grupos de TC. Nos grupos que coordeno o tema alcoolismo é o eleito muitas vezes como tema a ser aprofundado e às vezes sem que a princípio se dê conta. Elege-se o maior sofrimento e lá está o alcoolismo como um complicador. Penso que pelo nível de sofrimento intenso que determina, sensibiliza os companheiros, que o elegem. Algumas vezes, não muito freqüentemente, alguém no grupo fala em grupos de ajuda mútua ou outro tipo de tratamento que tenha usado. Mas é freqüente que não haja citação de maneiras diferenciadas de lidar nem de grupos de ajuda mútua, que são a meu ver, instrumento precioso na melhora da auto-estima e na formação da rede de apoio destas pessoas que apresentam um sofrimento intenso, muitas vezes impossível de ser efetivamente aliviado em um só tipo de reunião ou tratamento. Entendo que todos os recursos devam ser disponibilizados, da religião aos tratamentos psicoterápicos especializados e grupos de ajuda mútua. E é necessário que estejamos preparados para aceitar as dificuldades e a validade de cada um deles para não passarmos duplas mensagens. Este é o primeiro risco. O nosso preconceito.
Alcoolismo, como qualquer doença, apresenta graus diferentes de gravidade, assim como a família é afetada de maneira diversa. Uma família bem estruturada, a resiliência de seus membros, enfim, há muitos fatores em jogo que determinam a gravidade de cada caso.
O que tenho observado em minha prática com moradores de favela e pessoas de baixa renda, são situações extremamente graves onde a desesperança afasta o paciente do tratamento. É preciso ter paciência e devolver a esperança, aos poucos, sem pressa, lembrando a freqüente dificuldade de formar vínculos apresentada por pacientes muito afetados.
O segundo risco, a meu ver, relaciona-se à nossa necessidade de reforçar as qualidades das pessoas muito fragilizadas. É preciso que entendamos que a mulher de alcoólatra tem tendência à vitimização, e é preciso cuidado para não reforçar este aspecto negativo. Outro aspecto se relaciona ao fato de que ela costuma crescer muito no tempo em que o companheiro se retrai. Muitas vezes ela tem que ocupar os espaços que ele vai deixando à medida em que diminui a sua(dele) capacidade. É uma necessidade para a sobrevivência da família que ela arrume emprego, ou mais um emprego, aprenda a lidar com pedreiros, mecânicos, a “se virar sozinha”. E ela fica muito poderosa. E mesmo que negue, gosta, porque há vários ganhos secundários. E para que o seu companheiro possa retomar a sua vida quando em recuperação, ela tem que voltar a ocupar o seu lugar, diminuindo, encolhendo, desinchando e deixando espaço para ele. E isto é difícil por vários motivos, dentre eles, a raiva e o ressentimento acumulados em anos de desacertos. Se durante a terapia valorizarmos demais a sua força, podemos atrapalhar o seu processo e o processo do casal.
É preciso que entendamos que ela não vai ficar completamente feliz quando ele entrar em abstinência, por mais incompreensível que nos pareça. Alcoolizado ele não é nada, não tem poder nenhum e ela tem o peso, mas tem a força para decidir tudo. Sem beber ele cria vontade própria e os conflitos são inevitáveis. É necessário que ambos estejam preparados para isso. Precisamos ajudá-los a enxergar isso lembrando que conviver é sempre difícil, em qualquer situação.
Quando ele para de beber as expectativas de ambos são muito diferentes. Enquanto ele espera um tapete vermelho pelo “enorme feito”, e não deixa de ser um enorme feito, ela acha que ele demorou demais, não fez mais do que a obrigação e está magoada e ressentida por tudo que ele causou e por suas próprias reações. Esse descompasso é muito perigoso, sendo fator de recaída, muito freqüentemente.
Nem sempre é fácil separar o que são sintomas da abstinência das características individuais. “Eu não gosto deste marido”, disse-me uma paciente cujo marido havia parado de beber havia dois meses. “Ele é muito chato”, “eu não me casei com alguém assim”. “Antes (quando bebia) era alegre, brincava, ria. Agora está casmurro, emburrado pelos cantos.”
É preciso mostrar a ela que isso deve ser passageiro, que ele está enxergando o mundo sem o filtro mágico que o isolava, está tomando contato com o tamanho do estrago causado por seu comportamento, além do mal estar causado pela adaptação do seu sistema nervoso que precisa reaprender a funcionar sem álcool.
Pode ser ainda que ele seja mesmo meio casmurrão e que o álcool o deixasse diferente, mais leve.
Por outro lado a companheira foi se adaptando lentamente à disfuncionalidade da relação. Desaprende de lidar com questões normais da vida, se é que aprendeu algum dia. Como muitas esposas são também filhas de alcoolistas, muitas vezes ela não sabe viver sem essas disfunções por falta de aprendizado das coisas normais da vida. Podem ser muitas as lacunas em sua formação.
Imaginemos uma pessoa nascida e crescida num estado alegre do nordeste brasileiro, com muita música, alegria, pouca roupa, muita dança, que subitamente vá morar com uma família japonesa muito séria, lá no Japão. Creio que seja um bom modo de entender porque filha de alcoólatra se casa com alcoólatra. Evidente que o Whitaker tem explicação melhor.

ALCOOLISMO DOENÇA
É uma síndrome complexa que acomete múltiplos órgãos, desde o sistema nervoso central ao pâncreas, fígado, coração e tem como característica a negação, a projeção, a mentira, culpa, insegurança, minimização, justificativas, manipulação, racionalização, vergonha e a baixa auto-estima. Fala-se em doença física, mental, social e espiritual.
Do ponto de vista prático, a idéia de que o comportamento desorganizado é devido a uma doença e não a falha de caráter ajuda o familiar e o próprio alcoólico, tirando o julgamento moral e minorando a culpa.
Temos observado que muitos desses pacientes se perdem porque ninguém se empenha, ou não sabe como ajudá-los efetivamente e quando muito comprometidos eles não conseguem sair sem ajuda e paradoxalmente recusam ajuda. Muitas pessoas de boa vontade procuram fazer alguma coisa, falando com o dependente, tomando atitudes que não resultam em nada positivo, porque nesse caso só boa vontade não resolve, é preciso ter conhecimento para entender as respostas e enfrentar de maneira eficiente, com chance de bons resultados. Entender que recaída não é retrocesso e pode fazer parte do processo já ajuda muito o dependente e seu familiar.
Segundo Vailland, o tratamento inadequado pode retardar mais do que o adequado acelerar o processo do paciente.
O tratamento, para Edwards seria “a cutucada em direção a uma maneira mais positiva de ver as coisas, o encorajamento da auto-realização e da auto-eficácia, a ajuda na escolha de um objetivo apropriado e a aliança entre a intervenção terapêutica e os processos naturais de mudança”.
Fico muito incomodada quando um familiar ou mesmo profissional diz de um paciente “esse não tem jeito”. É a condenação que pode não ter apelo. Tenho visto casos absurdamente graves se resolverem, com pacientes de 70 anos ou mais se recuperando e essa frase não faz sentido.
Entender que a dependência de álcool ou de outras drogas, uma vez estabelecida, constitui uma condição potencialmente maligna (Edwards) pode nos ajudar na orientação do paciente e da família. E o seguimento, no estudo de Marshal, de 20 anos de 100 alcoolistas com idade média de 42 anos no início, nos dão idéia da gravidade, ou malignidade:Ao final, 44% tinham falecido, 17% continuavam bebendo de modo dependente e 17% se mantinham abstinentes. Marshal, 94.
Com relação à necessidade de intervenção, temos dados mais gerais que nos dão conta das dimensões do acometimento. Cerca de 45% dos atendimentos em pronto socorros de psiquiatria, 60% dos acidentes automotivos com vítimas fatais, 70% dos homicídios, 50% dos atendimentos em ambulatórios de clínica geral estão relacionados com uso de álcool. Em nossa experiência com favelados, este último número sobe até 80%.

DIAGNÓSTICO CLÍNICO
É uma dúvida freqüente dos familiares, dos profissionais e do próprio usuário de álcool. Ser ou não dependente. “Ele bebe muito, mas...”
Em relação ao álcool as pessoas podem ser abstinentes, fazerem uso sem prejuízo e usarem de maneira prejudicial. O uso prejudicial pode estar dentro dos parâmetros que chamamos de uso nocivo, que é o uso que causa problemas e no entanto não haver dependência e quando a pessoa o desejar, deixa de usar, sem problemas. Ou o uso dependente leve, moderado ou gravemente dependente. Há vários questionários padronizados que podem ser utilizados. Citaremos o “CAGE”, idealizado por Rouse, 1970, foi validado por Masur e Monteiro para uso no Brasil. Consiste de 4 perguntas, e a sigla provém das palavras chave: Cut-down (Redução), Annoyed (Irritação), Guilty (culpa) e Eye-opener (Bebida revigorante) .
Considera-se o resultado positivo quando há duas ou mais respostas positivas.

(C) – Alguma vez o Sr sentiu que deveria diminuir (cut-down) a quantidade de bebida ou parar de beber ?
(A)- As pessoas o aborrecem(annoyed) porque criticam o seu modo de beber ?
(G)- O Sr. se sente culpado (guilty) (chateado com o sr mesmo) pela maneira com que costuma beber ?
(E) - O Sr. costuma beber pela manhã (eye-opener) para diminuir o nervosismo ou a ressaca ?

OS 13 ITENS DE DEPENDÊNCIA
Este questionário é usado em estudos da Organização Mundial da Saúde e utilizamos uma tradução não validada, apenas para uso clínico.
Cada pergunta pode ser respondida em escala de cinco pontos (0 a 4) de acordo com a freqüência : nunca – 0;menos que mensal – 1; mensal – 2; semanal – 3; diário ou quase – 4. Três ou mais respostas “mensal” já confirmam a presença de dependência.
Responda sobre a sua forma de beber nos últimos doze meses:

1. Achou difícil tirar a idéia da bebida do seu pensamento ?
2. Perdeu refeições porque estava bebendo ?
3. Não conseguiu parar de beber após ter começado a beber ?
4. Achou difícil parar de beber antes de ficar embriagado ?
5. Bebeu bastante num dia e na manhã seguinte precisou de um gole para sentir-se bem ?
6. Bebeu mais que seus amigos ?
7. Bebeu em grandes goles para sentir logo o efeito da bebida?
8. Deixou de fazer o que devia por causa da bebida ?
9. Permaneceu embriagado por vários dias seguidos ?
10. Precisou mais bebida do que usava para atingir o efeito desejado ?
11. Tentou diminuir o consumo de bebida e não conseguiu ?
12. Precisou beber em horários nos quais normalmente não bebe ?
13. Bebeu e na manhã seguinte apresentou fortes tremores nas mãos ?
Saunders, Aasland e Grant, OMS. Tradução S. Paula Ramos.

CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO
Um bom meio de entender dependência química é entender os critérios oficiais de diagnóstico. Chego a usá-los nas consultas para mostrar para a família e o próprio paciente que ele é, ou não, dependente de álcool ou outra droga, qual a gravidade de sua dependência.
A conscientização do problema é parte fundamental no tratamento do dependente químico e livros especializados podem ser muito eficientes como instrumento nesse sentido.
Os critérios da OMS, o CID 10, tem algumas pequenas diferenças em relação ao DSM-4, norteamericano e há quem prefira um em relação ao outro, porém não vemos diferença significativa entre ambos.
Veja que as diferenças são pequenas:

CRITÉRIOS DO DSM-IV PARA DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS
Um padrão de uso disfuncional de uma substância, levando a um comprometimento ou desconforto clinicamente significativo, manifestado por três(ou mais) dos seguintes sintomas, ocorrendo durante qualquer tempo num período de 12 meses.

1. Tolerância, definida por um dos seguintes critérios:
a) Necessidade de quantidades nitidamente aumentadas da substância para atingir intoxicação ou o efeito desejado.
b) Efeito nitidamente diminuído com o uso contínuo da mesma quantidade de substância.

2. Abstinência, manifestada por um dos seguintes critérios:
a) Síndrome de abstinência característica da substância.
b) A mesma substância(ou outra bastante parecida) é usada para aliviar ou evitar sintomas de abstinência
3. A substância é freqüentemente usada em grandes quantidades ou por período maior do que o intencionado.
4. Um desejo persistente ou esforço sem sucesso de diminuir ou controlar a ingestão da substância.
5. Grandes períodos de tempo utilizados em atividades necessárias para obter a substância, usá-la ou recuperar-se dos seus efeitos.
6. Reduzir ou abandonar atividades sociais, recreacionais ou ocupacionais por causa do uso da substância.
7. Uso continuado da substância, apesar do conhecimento de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que tenha sido causado ou exacerbado pela substância.

CRITÉRIOS DO CID-10 PARA DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS
O diagnóstico de dependência deve ser feito se três ou mais dos seguintes critérios são experienciados ou manifestados durante o ano anterior.
1. Um desejo forte ou senso de compulsão para consumir a substância.
2. Dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância em termos de início, término ou níveis de consumo.
3. Estado de abstinência fisiológica quando o uso da substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por: síndrome de abstinência característica para a substância ou o uso da mesma substância (ou de uma intimamente relacionada) com a intenção de aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.
4. Evidência de tolerância, de tal forma que doses crescentes da substância psicoativa são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas.
5. Abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da substância psicoativa; aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou tomar a substância ou recuperar-se dos seus efeitos.
6. Persistência no uso da substância a despeito da clara evidência de conseqüências manifestamente nocivas tais como: dano ao fígado por consumo excessivo de substância, ou comprometimento do funcionamento cognitivo relacionado com a droga: deve-se procurar determinar se o usuário estava realmente consciente da natureza e extensão do dano.


COMORBIDADE
É recomendável a consulta ao psiquiatra quando há muita dificuldade para manter abstinência. O paciente pode ter alguma doença psiquiátrica que se não tratada dificulta ou impossibilita o processo de recuperação.
Lembramos que a depressão só poderá ser diagnosticada após alguns meses de abstinência devido ao fato de o álcool ser depressor do SNC.

CODEPENDÊNCIA
Margareth Cork, em 1969, publicou “The forgothen Children” depois de entrevistar mais de uma centena de crianças e adolescentes filhos de alcoolistas, e suas conclusões são intensas e mesmo chocantes. Ela fala em caos e sofrimento silencioso dessas crianças. Caos e sofrimento que irão se transformar em mais sofrimento e patologias na idade adulta se não tratados. Ela fala ainda do que chama de uma falácia – a de que com a recuperação do pai alcoolista, a criança automaticamente fica bem. É preciso tratar essas crianças, conclui, para romper o ciclo. Porque sabemos que a repetição da disfunção é freqüente, em cascata, através de gerações, com filhas de pais alcoolistas casando-se com alcoolistas numa proporção assustadora além de variada gama de psicopatologia forjadas e mantidas nesse ambiente.

Em Children of Chemichaly Dependent Parents, Thomas Rivinus lembra o ambiente caprichoso e inconsistente da família com alcoolismo e interroga o efeito a longo prazo quando a criança passa a infância esperando que o pai a veja, odiando a mãe, vendo distorções do tipo: usar o dinheiro do cofrinho para comprar bebida, quando falta comida em casa, permanecer no meio da guerra dos pais, sobreviver pelo aprendizado de não confiar em um ou nos dois pais , aprender que os pais são capazes de mentir para ele, manipulá-lo e abusar dele sem razão clara, que o pai pode variar de esquivo, assustador, para maravilhoso, em outro momento, sobreviver à confusão do pai alcoólico e da mãe não alcoólica, servir de apoio emocional ou “saco de pancada”. Vivenciar mil mortes desse pai a cada ano.

A criança desculpa os pais e aprende a não depender deles e cresce insegura no seu pacto de segredo familiar, muito confusa sobre o que acontece, sobre em quem confiar e o que fazer. Como resultado, não confia em ninguém, inclusive em si mesma. A criança é generosa e assume a culpa, perdoando os pais. Como conseqüência desenvolve habilidades – torna-se capaz de se ajustar a sua baixa auto-estima e vergonha e quando adulta, não importa o tamanho do sucesso, guarda uma sensação de fracasso. Ela aprende também a não sentir, não reagir, técnicas de maior sucesso em seu mundo e resposta segura que cria o bloqueio emocional no adulto.
“Veja, ouça e não fale” torna-se uma lei.
Timem Cermak apresentou proposta para o DSM-II, de critérios para diagnóstico de codependência e não foi aceito. Porem, de seus estudos sobrou um caminho que nos parece muito adequado e consistente. Tenho observado em meus pacientes muitas destas características e não encontrei nada mais apropriado até o momento para me ajudar a lidar com eles.
Ele fala em necessidade de controle, depressão, hipervigilância, baixa auto-estima, sentimento de ser menos que, relacionamento prolongado com pessoas dependentes, sentimento profundo de culpa, sentimento de raiva, medo, insegurança, ansiedade a maior parte do tempo. São ainda pessoas suscetíveis de sofrerem abusos cronicamente, de permanecer num casamento com um abusador de substância por muitos anos sem procurar ajuda.

Critérios :
A - Continuado investimento da auto-estima na habilidade para influenciar/controlar sentimentos e comportamentos, em si mesmo e em outros, em face a sérias conseqüências adversas.
B - Envolvimento na responsabilidade pelas necessidades de outros em prejuízo das próprias.
C - Ansiedade e distorção de limites em relação à intimidade e separação.
D - Envolvimento em relações com pessoas com distúrbios de personalidade, dependência química ou desordem de impulso.
E - Apresenta pelo menos três das seguintes características:
1. Excessiva confiança na negação
2. Constrição de emoções
3. Depressão
4. Hipervigilância
5. Compulsões
6. Ansiedade
7. Abuso de substâncias
8. Vítima recorrente de abuso físico ou sexual
9. Estresse relacionado com doença física
10. Permanência numa relação com um abusador de substância por pelo menos dois anos sem procurar ajuda.

Há profissionais que se recusam a aceitar que haja algo especial com as pessoas que se relacionem com um dependente químico.
Tenho visto em familiares de alcoolistas e de usuários de outras drogas uma seqüência e repetição de maneiras patológicas de enfrentamento ou fuga da questão que me fazem pensar numa organização especial dos mecanismos mentais para se adaptarem a esta situação disfuncional. Ou ainda, que as pessoas que conseguem manter relacionamento com um dependente químico tenham um perfil tal que tudo funciona no sentido de manter a disfunção e a doença, funcionando como um anjo protetor às avessas que mantém a disfunção e impede ou dificulta a recuperação do dependente.
Tenho encorajado as mães a trazerem as crianças para os grupos, porque a justificativa de não trazê-los por que ouviriam histórias “pesadas” não me parece lógica. A violência e os abusos são sofridos ou presenciados dentro de casa. Um paciente de 65 anos, ansioso, que sofre de insônia, conta que na infância viu muitas vezes o pai alcoolizado tentando matar a mãe e o irmão se interpondo para a proteger. Era pequeno ainda quando o pai foi assassinado com crueldade nas vizinhanças de sua casa.
Essas crianças vivenciam um sofrimento intenso e se tornam confusas porque se um dos pais bebe, e sua conduta é caótica e gera medo, vergonha, raiva, insegurança, ansiedade, o outro, que não bebe costuma tornar-se mais confuso ainda. Estas crianças presenciam e/ou sofrem agressões verbais e mesmo físicas entre os pais e outros membros da família, e as leis do lar alcoólico incluem – NÃO FALAR, NÃO CONFIAR, NÃO SENTIR. Precisamos dar voz à essas crianças e fazer com que possam entender o que se passa.
Por outro lado, tenho presenciado alívio na expressão dessas crianças ao participarem dos grupos especializados. Entendo que elas tem o direito de saber que se trata de doença e que há tratamento e saída para a sua situação e da sua família. Precisamos dar-lhes esperança.

COMPLEXIDADE
O alcoolista, em sua trajetória desenvolve um número grande de vias de ação organizadas em torno de um só propósito – continuar bebendo apesar de tudo. Ele perde a saúde, o emprego, a família e precisa continuar bebendo. Porque a dependência tem como característica uma necessidade de uso da mesma ordem das necessidades vitais. Beber água, alimentar-se, manter relacionamento sexual fazem parte do circuito da recompensa, um circuito cerebral que tem por função manter a vida do indivíduo e a vida da espécie. E é lá que o álcool e outras drogas de abuso fazem a sua desorganização. Vaillant diz que “a força da dependência não reside no córtex, mas no campo das transformações celulares... longe do julgamento, do pensamento, longe da força de vontade e longe do insigh psicanalítco”.
O afeto da família torna-se menos importante do que o uso de álcool. A suspensão da droga causa distúrbios físicos como tremores, convulsões, delírios, como conseqüência das adaptações celulares. O alcoolista torna-se refém de sua dependência e a família muitas vezes torna-se refém do dependente.

ENFRENTAMENTO
Alcoólicos Anônimos constituiu-se na primeira tentativa bem sucedida de enfrentamento da questão do alcoolismo. Logo depois, psiquiatras de Minnesota, mais especificamente, da Clínica Hazelden, juntaram-se aos grupos e os levou ao interior da clínica, trabalhando durante anos para conseguir unir psiquiatria e ajuda mútua, no Modelo Minnesota de tratamento que é a base do tratamento de muitas clínicas ainda hoje. Pesquisadores e estudiosos têm avançado nesta questão desafiadora e Miller, nos EUA, criou todo um sistema de motivação para o alcoolista. Griffits na Inglaterra apresenta outros modelos de tratamentos efetivos. Marlat e Gordon criaram todo um sistema de prevenção de recaída. No Instituto Johnson criou-se uma técnica de abordagem que rompe com a resistência do paciente para aceitar o tratamento que ele chama de Intervenção Orientada, trazida ao Brasil por Donald Lazo na década de 90. Esta técnica foi modificada por Stanton e colabs.que apresenta uma variação na sua aplicação. Sabemos ainda que a terapia familiar é um valioso instrumento na recuperação desses pacientes e a terapia comunitária tem se mostrado muito eficiente nestes casos.

AÇÃO
De tudo isso o que nos fica é a certeza de termos que interferir. Não podemos ficar de braços cruzados enquanto uma pessoa afunda no alcoolismo. Se a dependência é grave ele não encontrará a saída sozinho e o seu fim será por colapso físico, acidente fatal ou colapso mental.
Precisa de ajuda e não aceita ajuda. O profissional precisa aprender a enfrentar esse desafio. Caso contrário o paciente alcoolista irá morrer pelas conseqüências de sua doença e o profissional pode dizer da esposa, como dizem os leigos – “esta mulher é uma santa, agüentou esse mau caráter durante mais de 20 anos”.
A família, em seu sofrimento intenso, tende a repetir a história através de gerações. É comum que a viúva case novamente com alcoólatra.
O que nos motiva é que há muitas modalidades, variadas possibilidades de enfrentamento.
Dependência Química e espiritualidade*
Podemos dizer que a espiritualidade é a qualidade pela qual uma pessoa se relaciona com as coisas que lhe são mais importantes, tanto no seu mundo exterior como também consigo mesma, manifestando-se pelo seu comportamento, pelo modo de viver dessa pessoa, pelo seu relacionamento com as outras pessoas e com a sua inserção social. O desenvolvimento espiritual tem a ver com as nossas realizações, com a nossa autenticidade, com a sintonia que mantemos com as outras pessoas e com o mundo que nos cerca. E esta sintonia transcende a existência individual, quando nos conscientizamos das responsabilidades sociais, sobre as nossas escolhas e os caminhos que trilhamos.

Na Conferência de Abertura do 13º Congresso Brasileiro de Alcoolismo (Rio de Janeiro, 12 a 15 de agosto de 1999), o Dr. George Vaillant, expoente mundial nos estudos de alcoolismo, afirmou:
"O poder que a dependência química exerce sobre os seres humanos não reside no nosso córtex. O poder da dependência em nossas mentes mora no que foi chamado o nosso cérebro de réptil. O poder localiza-se no campo das transformações celulares no meio do nosso cérebro – o nucleus accumbens e o tegmentum superior. Essas transformações estão além do alcance da força de vontade, além do alcance do condicionamento e além do alcance do ‘insight psicoanalítico”.
Essas formações citadas pelo Prof. Vaillant situam-se no meio do encéfalo, e os neurônios que as constituem intercomunicam-se, formando um circuito que chamamos de Circuito de Recompensa, por ser aí que se processam as sensações prazerosas, as recompensas proporcionadas pela satisfação, tanto das necessidades básicas de sobrevivência (sede, fome, sexo), quanto de outros prazeres, os quais, modulados pela consistência moral daquilo que se pensa e que se faz, compõem o significado e o propósito da própria vida. Vale dizer que aquilo que se pensa e o que se faz é então influenciado pelo Circuito de Recompensa, pois este possui interações diretas ou indiretas com várias áreas e sistemas do cérebro, incluindo as relacionadas à vivacidade, emoção, memória, motivação, equilíbrio e controle dos hormônios, as quais, somando-se à sua interação com o córtex, modulam o caráter e o comportamento da pessoa.
Sob o ponto de vista evolutivo os répteis, com o seu cérebro primitivo, foram os primeiros animais a possuir as formações neurológicas geradoras das sensações de recompensa, e o efeito das drogas resulta justamente da sua atuação sobre esse cérebro primitivo, que coexiste em nosso encéfalo, ao lado do cérebro afetivo e do cérebro racional. Daí a referência do Professor Vaillant de que o poder das drogas situa-se fora do alcance da força de vontade, do condicionamento e do "insight" psicoanalítico.
Além das recompensas fundamentais — satisfação sexual, manter-se alimentado, sem sede, aquecido e em segurança o homem demonstra prazer na reciprocidade afetiva, bem como no amor, aceitação, posicionamento e reconhecimento social e em muitos outros prazeres circunstanciais adequados à sua cultura, ao seu temperamento e à sua personalidade.
Esse prazer biológico que proporciona às pessoas um sentido de vida, fundamental para a sua autopreservação, também é fundamental para a vida social e para a perpetuação da espécie, assumindo então um caráter transcendente, motivo pelo qual nós podemos apontar o Circuito de Recompensa como o elo de ligação, a interface da biologia com a espiritualidade.
De uma forma ou de outra, as drogas, como o álcool, têm a sua ação farmacológica centrada no Circuito de Recompensa, proporcionando prazeres artificiais e fugazes, mas como são prazeres, constituem reforço para a continuidade progressiva do uso, uma das características da doença alcoolismo e de outras dependências químicas. Os estímulos que partem do Circuito de Recompensa, alterados pelas drogas, e que vão para outras áreas do cérebro, determinam distorções, sobretudo relacionadas ao comportamento e ao caráter. E como bem disse o Prof. Vaillant, a sua localização fora da área cerebral onde se elaboram os pensamentos, o raciocínio e a crítica, afasta a possibilidade da força de vontade moderar o padrão do uso daquelas substâncias impondo-se, como conseqüência, a abolição do seu uso para as pessoas que atingiram sintomas de dependência ou mesmo para aquelas pessoas que circunstancialmente estejam em risco de chegar a esse estado.

Nesse ponto do raciocínio retornamos à espiritualidade e sua ligação com o Circuito de Recompensa, para afirmar que o seu desenvolvimento irá estimular a conscientização do valor da sobriedade, promovendo uma motivação firme e sobretudo persistente de uma vida sem álcool ou outras drogas, idéia que antes se afigurava absurda e completamente sem sentido, para o usuário.
Dissemos ao início que a espiritualidade, manifestada pelo comportamento, transcende a existência individual e agora, imaginando o desenvolvimento espiritual num processo continuum, vislumbramos a transcendência da esfera material com a possibilidade de interação do homem com um Poder Superior a si mesmo, num movimento consciente de resgate biológico da sobriedade.
Dessa forma podemos concluir que, dentro dos conhecimentos científicos atuais, um processo terapêutico que demonstre eficiência para deter o curso da doença alcoolismo ou da adição, tem obrigatoriamente que incluir um programa de revisão e aprimoramento espiritual, do mesmo modo como pensaram os co-fundadores de A.A., Bill e Bob, há mais de 60 anos.
Eles freqüentaram as reuniões dos Grupos Oxford, uma sociedade religiosa onde se preconizava o altruísmo, amor, honestidade e pureza, todos de forma absoluta. Essa proposição muitas vezes desanimava aos alcoólicos, os quais também se sentiam pressionados pela severidade do grupo. Mas ali já se enfatizava a necessidade do trabalho pessoal de um membro com o outro e se praticava um tipo de confissão, a reparação de danos causados e a meditação, mais tarde adotados na programação de Alcoólicos Anônimos.
De todo modo, os Grupos Oxford reuniam pessoas com outros padecimentos que não só os do alcoolismo, e por tudo isso os co-fundadores de A.A. resolveram organizar grupos de mútua-ajuda específicos para alcoólicos, estabelecendo um programa de seis etapas, com o objetivo de um aprimoramento permanente e gradual da espiritualidade. Inspiraram-se nos pensamentos de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino – com suas quatro virtudes capitais, Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança – e William James, o grande psicólogo e filósofo do pragmatismo americano, autor da obra As Variedades da Experiência Religiosa, que compartilhou com Karl Gustav Jung, eminente médico e psicólogo suíço discípulo de Freud, as idéias sobre a importância da experiência espiritual nos casos de difícil tratamento psicológico convencional (em correspondência com Bill, Jung chegou a mencionar a necessidade de uma "deflação do ego" e a conveniência de um contato pessoal e honesto com outro semelhante).
De toda essa experiência resultou o Programa dos Doze Passos, que foi rápida e universalmente aprovado por clérigos de todas as religiões, por psiquiatras e outros profissionais dedicados ao estudo ou ao tratamento do alcoolismo e, o que é mais importante, pelos próprios alcoólicos que buscam a sobriedade.


ALCOÓLICOS ANÔNIMOS
Alcoólicos Anônimos nasceu da busca de tratamento de um alcoólico funcionário da bolsa de valores de Nova York, que culminou em 1935 com seu encontro com um médico também dependente de álcool, na cidade de Akron, Ohio. Da conversa dos dois surgiu o movimento que agora apresenta adeptos em todo o mundo, com milhões de pessoas mantendo a sobriedade e melhorando a qualidade de vida em sua irmandade. No Brasil temos mais de cinco mil grupos, só na grande São Paulo são cerca de 200 grupos.. Há pouca formalidade e a pessoa não precisa dizer o nome, se desejar pode inventar um. Interessa a pessoa que lá está e nada mais. A receptividade de um novo adepto é amigável e ele é encorajado a retornar.
O programa de Doze Passos é apenas sugerido e pode ser utilizado de acordo com a possibilidade e disponibilidade de cada membro da irmandade.
Se alguns iniciam o programa esforçando-se para compreender os passos em sua seqüência, outros vão aos poucos, podendo levar anos para compreender e dar dois ou três fora da seqüência. Há um incentivo ao serviço dentro do grupo e isto faz com que surja um fio de auto-estima, que costuma estar muito baixa.
Muitos são os ganhos dos freqüentadores da irmandade. O primeiro deles talvez seja a descoberta de que ele pode ter esperança ao ver companheiros em recuperação que já reconstruíram parte de suas vidas e em variados graus. É a terapia de espelho. Ele vê que outros conseguiram ficar abstinentes e recuperar-se. Ele também pode. Outro é o encontro de um grupo de pessoas com propósitos semelhantes. Como diz Vaillant “a parede protetora da solidariedade humana”. Para alguém que viveu anos e anos de solidão é confortante esse encontro. Citando ainda Vaillant – “é preciso encontrar um comportamento que vá competir com o comportamento adictivo. Não se pode deixar o cérebro de “jacaré” com sede.” A freqüência ao grupo e o encorajamento dos companheiros para a mudança do estilo de vida é extremamente benéfico ao alcoolista

OS DOZE PASSOS DE ALCOÓLICOS ANÔNIMOS:
1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool e que tínhamos perdido o controle de nossas vidas.
2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia nos devolver a sanidade.
3. Tomamos a decisão de entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, como nós O concebíamos.
4. Fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.
5. Admitimos para Deus, para nós mesmos e para um outro ser humano, a natureza exata de nossos defeitos.
6. Ficamos inteiramente prontos para que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.
7. Humildemente, pedimos a Ele para remover nossas imperfeições.
8. Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a fazer reparações a todas elas.
9. Fizemos reparações diretas a essas pessoas, sempre que possível, exceto quando fazê-lo viesse prejudica-las ou a outras pessoas.
10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.
11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, como nós O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós e a força para realizar essa vontade.
12. Tendo tido um despertar espiritual, por meio destes Passos, procuramos levar esta mensagem a outras pessoas e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.

AS DOZE TRADIÇÕES DE ALCOÓLICOS ANÔNIMOS
1. Nosso bem estar comum deve estar em primeiro lugar, a reabilitação individual depende da unidade de AA
2. Somente uma autoridade preside, em última análise, o nosso propósito comum – um Deus, amantíssimo, que se manifestou em nossa consciência coletiva. Nossos líderes são apenas servidores de confiança; não têm poderes para governar.
3. Para ser membro de AA, o único requisito é o desejo de parar de beber.
4. Cada grupo deve ser autônomo, salvo em assuntos que digam respeito a outros Grupos ou ao AA, em seu conjunto.
5. Cada Grupo é animado de um único propósito primordial – o de transmitir sua mensagem ao alcoólico que ainda sofre.
6. Nenhum Grupo de AA deverá jamais sancionar, financiar ou emprestar o nome de AA a qualquer sociedade, parecida ou empreendimento alheio à Irmandade, para que problemas de dinheiro, propriedade e prestígio não nos afastem de nosso objetivo primordial.
7. Todos os Grupos de AA deverão ser absolutamente auto-suficientes, rejeitando qualquer doações de fora.
8. Alcoólicos Anônimos deverá manter-se sempre não profissional, embora nossos centros de serviço possam contratar funcionários especializados.
9. AA jamais deverá organizar-se como tal; podemos, porém, criar juntas ou comitês de serviço diretamente responsáveis perante aqueles a quem prestam serviços.
10. Alcoólicos Anônimos não opina sobre questões alheias à Irmandade; portanto o nome de AA jamais deverá aparecer em controvérsias públicas.
11. Nossas relações com o público baseiam-se na atração em vez da promoção; cabe-nos sempre preservar o anonimato pessoal na imprensa, no rádio e em filmes.
12. O anonimato é o alicerce espiritual das nossas Tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os princípios acima das personalidades.

O ANONIMATO EM ALCOÓLICOS ANÔNIMOS*
O anonimato em AA vai muito além do que a primeira percepção poderia nos trazer. AA nada tem de sociedade secreta, como por exemplo, a maçonaria. Aos membros de AA não se sugere o anonimato como uma forma de confidencialidade, segredo.

A revelação de filiação ao AA deve ser discreta e apenas feita, a critério exclusivo do membro. Tais situações seriam, perante a família e a sociedade em geral. Outras situações, em consultas médicas, a abertura é recomendada. E nos casos de transmitir a mensagem de AA a outro alcoólatra, a abertura do Anonimato é imprescindível.

Naturalmente, em cada uma das três situações acima, o objetivo da abertura é diferente. Na primeira (família e sociedade), o objetivo é a informação que muitas vezes se cumpre dar. Ainda assim, o julgamento sobre abertura ou não deve ser do próprio. Para os médicos, tal informação pode auxiliar o diagnóstico de outras doenças. E no último, a abertura deve ser feita para criar o clima de identidade entre o que dá e o que recebe a mensagem.

Contudo, a essência do Anonimato tem um conteúdo absolutamente espiritual. O Anonimato é a expressão da Humildade – Diz a Bíblia: “Que sua mão esquerda não saiba o que a direita está fazendo”. E a Humildade é a virtude que tem que ser trabalhada como forma de desinflar o ego, até para o alcoólatra assumir sem sofrimento sua derrota e sua impotência perante o alcool. Neste sentido, o alcoólatra aceita ser mais um, em vez de sempre querer ser o mais importante. A experiência de AA nos diz que a prática do Anonimato nos leva a uma sobriedade feliz. Que se fale sempre na 1ª.pessoa do plural quando se se refere a conquistas e na 1ª. Pessoa do singular quando falamos de derrotas.

O Anonimato está inserido em cada uma das 12 Tradições, sempre em seu sentido espiritual: o bem estar comum (1ª. Tradição), a inexistência de autoridade (2ª. Tradição), o requisito para ser membro que não inclui qualidades, mas apenas a vontade de deixar a bebida (3ª. Tradição); são apenas alguns exemplos que evidenciam a verdade e o conteúdo de nossa 12ª. Tradição:

O ANONIMATO É O ALICERCE ESPIRITUAL DE NOSSAS TRADIÇÕES, CABENDO-NOS SEMPRE COLOCAR OS PRINCÍPIOS ACIMA DAS PERSONALIDADES.
*Autor: G. um membro de AA.
AL-ANON
O Al-Anon, grupo criado para ajudar familiares de alcoolistas usa o mesmo programa de AA com adaptações. O familiar com freqüência perde o controle da vida em relação ao alcoolista. E há toda uma literatura aprovada pela central da irmandade que orienta o processo de recuperação. Enxergo um paralelo entre o programa destas irmandades e a terapia cognitivo comportamental – ambas informam sobre a doença aos mesmo tempo em que prega a mudança de comportamento através de orientações práticas para o dia a dia.
Da mesma maneira que o alcoólico, o familiar perde a esperança e adoece fisicamente, somatizando seu sofrimento.
Encontrar um grupo de pessoas que sofrem tanto quanto ele, enxergar a possibilidade de sair do labirinto em que se meteu é alentador. Seguindo as recomendações, o familiar começa por voltar a atenção para si mesmo, deixando espaço para o alcoólico e todos se beneficiam.
Edward Griffit, um dos mais conceituados professores de dependência química recomenda aos terapeutas que freqüentem pelo menos 50 reuniões de Alcoólicos Anônimos. Eu recomendo que freqüentem reuniões de Al-Anon também.
Vejo as limitações desses grupos da mesma maneira que vejo as limitações de qualquer modalidade de terapia.
Sem sombra de dúvida os ganhos são muitos e irá depender da freqüência e capacidade de cada um.
Para mim, pessoalmente, foi extremamente benéfico, obtive alento e esperança na minha recuperação quando todos os outros métodos e modalidades de terapias falharam.
Tenho um sentimento de profunda reverência e gratidão pela irmandade de Al-Anon e AA.
Algumas palavras de membros do Al-Anon, nomes fictícios, todas elas esposas de alcoólicos :
“Cheguei ao Al-Anon desesperada, buscando algo, atirando para todo lado. Tive a sensação de ter encontrado a minha tribo. Tive um acesso de riso, um alívio muito, muito grande. Um banho de luz, fiquei absolutamente chocada com tanta luz”. Laura, 52 a, duas filhas, recém formada em psicologia – separada do marido há alguns anos.
“Quando cheguei no Al-Anon eu me sentia um farrapo humano, um traste, a última das mulheres, rendida. Voltei a sentir esperança. Eu não acreditava em Deus, em mais nada e voltei a acreditar que a vida poderia começar de novo. Eu estava viva e não sabia porque. Por mais que eu dissesse que estava sofrendo ninguém entendia e no Al-Anon todos entenderam. Eu me senti fazendo parte de alguma coisa, eu também era importante... e bastava que olhassem para mim, que sorrissem para mim e isso eu encontrei no Al-Anon.
Reencontrei minha vontade de viver, de viver bem. Recentemente, quando nadei com golfinhos, saltei de tiroleza, pude entender o quanto o Al-Anon me ajudou a entender que eu tenho direito de ter prazer. Na verdade o que eu senti no Al-Anon é indescritível.”
Cida, 56 anos, empresária, 4.o ano de psicologia, 4 filhos, 3 netos, continua com o marido que está sóbrio há muitos anos.
“O Al-Anon foi uma descoberta de uma nova forma de viver – uma nova visão da vida. Fui por insistência do meu marido, que ia ao AA, eu estava cansada e fui só porque ele insistiu. E ele insistiu porque estava acostumado que eu fizesse o que ele exigisse, só para mostrar que mandava e o tiro saiu pela culatra. Eu acabei ficando no Al-Anon e ele deixou o AA, só retornando 2 anos depois. Eu achava que tinha feito tudo que poderia ter feito, eu percebia que eu estava louca, tendo verdadeiros ataques histéricos e me consumindo. No Al-Anon entendi que eu estava doente e que tinha um caminho de tratamento pela frente. Aquilo era uma chance que eu estava tendo e sou agradecida a ele. Consegui quebrar o ciclo vicioso, cuidar da minha vida. Para mim o Al-Anon é uma forma que eu tenho de manter a minha sanidade mental, e a maneira de me manter equilibrada. É um programa de vida.”
Lúcia, 56 anos professora universitária, 3 filhos, continua com o marido que está abstinente há um ano.
“Cheguei ao Al-Anon através do incentivo do meu marido para ajudar outros...Ele estava sóbrio havia anos em AA e eu não convivi com alcoolismo. Eu não gostei, não entendi o que estava fazendo ali. Aquele sofrimento todo não me dizia respeito. Comecei a perceber as pessoas. Aquela não está legal, precisa de uma palavra. Comecei a receber os novos, a passar a mensagem.
Ganhei confiança em mim, em minha capacidade de fazer algo pelo outro, a possibilidade de me doar e receber tanto em troca e a oportunidade de auto conhecimento.Ganhei e dei muito amor. Eu estou sempre dizendo que o programa (do Al-Anon) ajudou demais, (durante a doença do meu marido) não perdi a serenidade e sou muito grata ao Al-Anon por isso”.
Rita, 65 anos , secretária executiva aposentada, sem filhos, continua com o marido, sóbrio há três décadas.

TERAPIA COMUNITÁRIA
Há alguns meses estamos empregando a técnica da terapia comunitária no grupo que tratamos há três anos. Temos tido sucesso, com a presença assídua e melhora percebida e relatada pelos pacientes. Trata-se de um grupo que já existia e no qual fomos alterando a técnica. A aceitação foi grande e me parece simples de entender as razões – falar fica mais fácil num ambiente onde as regras são – não julgar, não criticar, não dar conselhos, para pessoas que se sentem extremamente fragilizadas e culpadas, além, evidentemente de todas as outras características da TC que a tornam tão especial. E eles tem-se ajudado de maneira intensa e notamos a alegria com que partilham suas experiências e trocam esperança. Os pacientes do grupo de alcoolismo costumam participar do outro grupo, geral, sem abrir mão do seu específico, como se no de “companheiros” fosse mais fácil se expor.

Fonte: Espaço Comunitários Comenius
http://www.espacocomenius.com.br/manualum.htm


Bibliografia recomendada:
Alcoolismo, hoje – Sergio de Paula Ramos,Artes Médicas,97O Tratamento do Alcoolismo, Griffith Edwards, Loyola, 95Quero Meu Filho de Volta, Carlos BarcelosA Conquista de Um Caminho, Maria Braga, Nativa, 2001Alcoolismo, O Que Você Precisa Saber, Donald LazoThe Forgoten Children, Margareth CorkChilden of Chemically Dependent Parents, Thomas Rivinus, Ed.Brunner/Mazel, 1990Entrevista Motivacional, Miller e Rollnick, Artmed, 2001A Prevenção da Recaida, Marlat e GordonO Índio que Habita em Mim, Adalberto BarretoToda a literatura de AA e de Al-Anon